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Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública paulista será um dos oradores e falou com exclusividade ao SIFUSPESP sobre como mudanças na lei e de postura por parte do Judiciário podem provocar queda dos índices de superlotação e melhorar condições de trabalho para servidores, além de combater reincidência, crime organizado e privatização do sistema

 

por Giovanni Giocondo e Aléxis Góis

O Supremo Tribunal Federal (STF) realizará uma audiência pública virtual sobre o sistema penitenciário brasileiro, na próxima segunda-feira (14), a partir das 9h. O evento será transmitido ao vivo nos canais da TV Justiça e do Supremo no YouTube.

A audiência foi convocada pelo Ministro Gilmar Mendes e aprovada pela Segunda Turma  do STF durante o exame de pedido de extensão de um Habeas Corpus coletivo que pedia a concessão de prisão domiciliar a pais e responsáveis por crianças menores ou portadores de deficiência, impetrada pela Defensoria Pública da União.

O objetivo é ouvir o depoimento de autoridades e membros da sociedade em geral que possam contribuir com esclarecimentos técnicos e jurídicos sobre o sistema penitenciário brasileiro, as informações e os mecanismos de implementação da ordem coletiva proferida no habeas corpus coletivo, seu eventual descumprimento e os impactos na questão da superlotação carcerária. O evento, ao seu final, poderá criar uma comissão de acompanhamento das medidas de implementação do Habeas Corpus.

Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Dr. Leonardo Biagioni de Lima será um dos oradores da audiência. Por telefone, ele concedeu uma entrevista exclusiva ao SIFUSPESP em que explicou que, além de discutir este e outros Habeas Corpus coletivos - como o que permitiu a libertação de mulheres presas que estavam gestantes ou lactantes, em 2018, o STF pretende “ampliar o debate” para tratar de outras nuances que envolvem a superlotação do sistema prisional.

Na conversa, o defensor público esclareceu como a diminuição do contingente de detentos a partir de mudanças na legislação e na postura do Judiciário pode impactar positivamente no trabalho e na saúde dos servidores penitenciários e ser fundamental para o combate à privatização do sistema.  Além disso, a medida pode influenciar na melhoria das condições de permanência nas unidades prisionais, na queda dos índices de violência e reincidência criminal, na ressocialização e reintegração dos detentos à sociedade e na perda de influência pelo crime organizado.

 

“Estado de coisas inconstitucional” domina prisões

Com base nas inspeções feitas pelo Núcleo de Situação Carcerária nas unidades prisionais paulistas em 2021, Biagioni reforça o entendimento de que a situação do sistema prisional brasileiro na atualidade é totalmente insalubre e degradante. “Essa condição deteriorada se relaciona diretamente com à superlotação, à falta de produtos de higiene e de limpeza fornecidos aos detentos e ao racionamento de água”.

No olhar de Leonardo Biagioni, esse é o “estado de coisas inconstitucional” que o Supremo detectou em julgamento iniciado em 2015 sobre a situação do sistema prisional brasileiro. “A ação por descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 347, que recentemente voltou a tramitar no STF tangencia o debate que virá na audiência”, recorda. Há seis anos, o plenário da Corte anotou que nas prisões ocorreria “violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica”.

Para o defensor público, reduzir a superlotação do sistema é um dos caminhos para pôr fim a essas inconstitucionalidades, mas esse processo necessariamente passa por alterar imediatamente a política carcerária, com mudanças na Lei de Execução Penal (LEP), pela adequação a regras que já existem e pelo cumprimento, por parte do Poder Judiciário, a determinações feitas por instâncias superiores da Justiça.

 

Tentativas de privatização tem origem na “irracionalidade da superlotação”

Sobre a tentativa de terceirização das unidades prisionais de São Paulo, Leonardo Biagioni mencionou que a ação civil-pública impetrada pela Defensoria em 2019 contra a pretensão do governo João Doria e da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) tramita atualmente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). A Corte analisa recurso de apelação da Fazenda Pública contra a liminar favorável obtida pela Defensoria na primeira instância. 

A Justiça aceitou a justificativa de que a atividade policial é “indelegável” à iniciativa privada,  feita com base na aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Polícia Penal, no artigo 83-B da Lei de Execução Penal e nas regras mínimas para tratamento de presos das Nações Unidas (ONU), que estão na Constituição do Estado de São Paulo. A SAP suspendeu a licitação em maio de 2020, em razão da pandemia do coronavírus.

Biagioni explica que o interesse empresarial por gerir prisões surgiu justamente do que ele chama de “irracionalidade da superlotação”. “Como o Brasil é o terceiro país do mundo com mais detentos e o segundo em velocidade de aprisionamento, esses números em alta foram o chamariz desse debate da privatização, chamou a atenção do empresariado, que quer lucrar com essa mercadoria que é o sistema prisional”, pondera. 

“Esse é mais um motivo para combatermos a superlotação. Felizmente conseguimos provar nessa ação que os exemplos existentes no Brasil e no mundo são mais caros e não melhoram os serviços nem as condições das prisões”, explica. 

 

Impacto da superlotação na saúde mental dos servidores penitenciários e déficit

A saúde mental dos servidores do sistema prisional também sofre profundos impactos negativos em decorrência da superlotação do sistema. O defensor público explica que em conversas com os próprios policiais penais, durante as inspeções, o órgão verifica que o espaço insalubre do sistema prisional acaba agindo nas duas pontas, tanto em relação à pessoa presa, quanto em relação aos próprios servidores.

“Se pegarmos os dados das pessoas que estão presas hoje, a maioria não cometeu crimes que envolveram grave ameaça ou violência, que são mais da metade da população encarcerada. Se você retirasse essas pessoas, diminuiria o déficit de vagas. Se o Poder Executivo, nesse cenário, passasse a considerar desproporcional a pena privativa de liberdade para crimes não violentos, já haveria uma grande melhora na situação prisional, porque aí atingiria tanto os presos quanto os próprios servidores“, afirma.

Biagioni também concorda que com a redução da superlotação, a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) passaria a ser respeitada, alcançando-se o patamar estabelecido de um policial penal para cada cinco presos, em média. 

“Estamos bem longe disso. Mas se você reduzir a população carcerária, vai ter uma possibilidade de exercício, pelos servidores, da atividade para a qual eles foram confiados pela aprovação no concurso público, o exercício do cargo, de haver essa tentativa de ressocialização das pessoas presas. Havendo número adequado de profissionais de saúde, com garantia de direitos, e sem superlotação - que é a raiz de todos os problemas - o ambiente melhora para todos, sejam detentos ou funcionários”.

 

Revisão da lei de drogas e penas alternativas para crimes sem violência

Como forma de reduzir a massa carcerária, Leonardo Biagioni defende uma revisão da lei de drogas, que desde a mudança implementada no Código Penal em 2006, passou a resultar na reclusão de milhares de pessoas sob acusação de tráfico e associação para o tráfico, elevando sumariamente a população prisional. “É preciso descriminalizar, regulamentar o uso e acabar com essa guerra às drogas, que só tem matado as pessoas na periferia e levado tantas outras a serem presas, sem que o tráfico seja interrompido”, pondera. 

O defensor também acredita que crimes de menor potencial ofensivo, como furto e receptação, poderiam ser tratados com penas alternativas e colaborar para que a superlotação fosse reduzida. Fazendo essas revisões, e com o Judiciário respeitando as decisões das instâncias superiores sobre os habeas corpus coletivos, em pouco tempo nós poderemos pensar em garantias de direito, não só para sobrevivência no cárcere, mas de condições para se ressocializar e se reintegrar, o que não existe atualmente”, esclarece.

 

Crime perderia poder com menos detentos e sociedade veria redução da violência

Leonardo Biagioni concorda com a afirmação de que os brasileiros podem ser beneficiados com prisões menos superlotadas e mais pessoas condenadas cumprindo penas alternativas à reclusão, além de ser possível que a sociedade se torne menos violenta e o crime organizado deixe de ser tão influente sobre a população carcerária caso apenas parte desses detentos não permaneça dentro dos muros

“A facção criminosa que se instalou em São Paulo surgiu em um cenário em uma tentativa do Estado de punir com mais rigor os presos - com referência ao Carandiru - e atualmente o crime está fortalecido e espalhado pelo Brasil e por outros países”, reitera. 

“Como você combate isso na sua origem? Investindo em direitos fundamentais para a população em geral. O orçamento do Estado é um só, então se você gasta menos com prisões e ´circunstâncias´ das prisões, há mais recursos para moradia, educação, saúde, emprego, assistência social e consequentemente na própria segurança pública, com a ocorrência de menos crimes e consequentemente, de menos violência”, explica. 

Se houver mais acesso a oportunidades, as pessoas não terão de cometer delitos para sobreviver, e os que cometerem precisam ter garantias de outros “caminhos”, do trabalho e do estudo, por exemplo, porque senão vão reincidir e ao voltar a cometer crimes, que é o maior temor da sociedade. Diminuindo o número de pessoas que ingressam nos estabelecimentos prisionais, consequentemente a gente também diminui a possibilidade da própria prática dos crimes.

É nesse sentido que para o defensor público, funcionaria, na prática, a saída dos detentos do sistema. “As pessoas ficam presas, sem trabalho, sem educação e sem o mínimo para a sobrevivência, e saem pior ainda, porque vão estar ali com o estigma da prisão, muitas vezes sem conseguir tirar alguns documentos pelo fato de ter ainda uma pena de multa para pagar. A pessoa por ser pobre não consegue dissolver essa dívida, entrando em um labirinto em que ela não consegue um emprego formal nem informal, e acaba nessa porta giratória voltando para o próprio cárcere”, finaliza.

 

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